Mais renomado crítico enológico a pisar no Brasil até hoje, o irlandês Oz Clarke não se deixa seduzir pela fama. Caso fosse diferente, a entrevista a seguir teria sido interrompida pela metade, quando foi servido o almoço em uma das vinícolas que o vem recebendo desde o início da semana.
— Isso é mais importante do que almoço — defendeu, mostrando-se aberto a segurar a fome até que tivesse explicado seu ponto de vista sobre os rótulos brasileiros, a influência da mídia no mercado enológico mundial e os caminhos que vêm sendo trilhados pelo Velho Mundo (tradicionais produtores europeus) e pelo Novo Mundo (países das Américas, da África, da Ásia e da Oceania) do vinho.
Apresentador de televisão, autor de livros de sucesso no Reino Unido e vencedor de diversos prêmios, Clarke integra um grupo de jornalistas internacionais ciceroneados no país pelo Wines of Brazil, projeto que tem a missão de divulgar a vitivinicultura nacional pelo mundo. Ao deixar o Brasil amanhã, ele leva a impressão que a cadeia produtiva por aqui vem fazendo avanços, mas que precisa colocar a tradição um pouco de lado se quiser se destacar no planeta vinho.
Enoblog: Essa é sua segunda visita ao Brasil. Mas diferentemente da primeira vez, em que foi convidado, agora você tomou a iniciativa de estar aqui. O que o moveu?
Oz Clarke: Ver que mudanças foram feitas, que direção o Brasil está tomando. Da última vez estive no Vale do São Francisco (no Nordeste), que é uma operação fascinante, mas uma área de grande volume. Os países precisam disso, e para o Brasil pode ser difícil conseguir uma. A Campanha, perto da fronteira com o Uruguai, é uma alternativa. Pelo menos no Vale do São Francisco se faz colheita quando se quer. A área da Serra gaúcha é diferente de qualquer outra área que eu conheço no mundo.
Enoblog: Por quê?
Clarke: É bastante úmido, relativamente alto, bem mais ao Norte do que as pessoas percebem _ no paralelo 29. Fica bem acima da África do Sul. Bem abaixo da Europa. Bordeaux fica no paralelo 45 (ao Norte). Isso é uma diferença grande em relação à força do Sol. Por sorte, há muitas nuvens para impedir o ataque do Sol sobre as uvas, mas muitas nuvens também significam mais chuvas. Há uma tradição que começou com a intenção de plantar variedades viníferas no fim do Século 19. Ela basicamente fracassou. Mas as pessoas que vieram das regiões do Trento, do Vêneto, do Alto Adige, eles tinham de continuar o trabalho. Se foi dado uma vinha com seis brotos a cada italiano que chegou, rapidamente eles as transformaram em 52 brotos, investindo em variedades como isabel. E por cerca de 100 anos, a isabel vendeu bem. Acho que um ou dois desses vinhos são realmente bons. As vinhas bordô são excelentes, cheias de personalidade. Fazem suco fantástico, e também bons vinhos. Alguns produtores conseguiram. Mas o mercado, as tendências, os críticos, o chamado mundo do vinho “sério”, eles não vão reconhecer qualquer produto tirado de uvas comuns como decente. Eu acho que estão errados. É possível fazer bons drinks com variedades americanas. Também acredito que o suco dessas uvas feito aqui é o melhor que eu conheço no mundo e, se feito corretamente, pode ser uma ótima base para coquetéis. Ninguém parece ter pensado nisso.
Enoblog: É que os vinhos comuns não têm boa reputação.
Clarke: Todos estão obcecados pelas viníferas, e tudo bem, porque o mundo do vinho é o império das viníferas. Mas eu peguei um pouco de suco e no hotel, antes de partir, vou até o bar e pedir um pouco de cachaça, vodca, gim, bourbon, tabasco e vou trabalhar nisso. Simplesmente acho que há algo aí. É possível fazer do suco algo tão sexy quanto o vinho. Mas este é um mundo vinífera. O Brasil é um lugar muito interessante. Se diz integrante do Novo Mundo, mas se comporta como Velho Mundo.
Enoblog: Como assim?
Clarke: Nesta região, o estilo de vida, da culinária, são italianos. A comida é deliciosa, as pessoas são fantásticas. O senso de que a vida é para ser aproveitada é evidente. Ao mesmo tempo, temos uma cultura enológica baseada em uvas francesas, não nas italianas. Se olharmos para a vinificação, ela segue padrões italianos. É uma combinação curiosa. A vinificação está perfeita, mas sinto que ela deveria “sair do quadrado” um pouco. Estou certo de que a escola de Bento Gonçalves é boa, os professores provavelmente são excelentes. Um ou outro está na faixa dos 20 anos, e a essas pessoas é preciso dar mais crédito. Mas quando pergunto a eles “onde vocês trabalharam no Exterior? Já estiveram na Califórnia?”, “Não”. “Já estiveram na Nova Zelândia?”, “Não”. “Já estiveram no Chile?”, “Hum, não”. “Austrália?”, “Não, mas estive na Itália”. Isso é ótimo, mas para pensar como o Novo Mundo é preciso ver o que o Novo Mundo está fazendo. E talvez o Novo Mundo olhe para a Serra gaúcha e diga “nós nunca plantaríamos uvas lá”, porque ele está ligado a condições confiáveis. Assim é o Chile, a Argentina. Claro, há lugares em que não há regularidade, então se pode aprender a viticultura desse tipo de lugar. Acho que muitos vinhos não tentam “sair do quadrado”. O Ibravin (Instituto Brasileiro do Vinho) fala na descoberta do vinho brasileiro. A alegria, a cantoria, a dança. Mas os vinhos não cantam nem dançam. Eles são sérios. Fazem bonito com a fruta, se saem bem no cálice. Se você servir uma taça de tannat ou merlot, em meia hora ele vai melhorar. Mas para novos consumidores, o vinho que leva meia hora para despertar no cálice não vai entusiasmar. Eu e você, que conhecemos vinhos, vamos dizer “eu espero meia hora”, porque sabemos o que significa. Gostaria de ver mais varietais básicos por R$ 12. Quando vamos às vinícolas, as pessoas tentam mostrar os melhores vinhos, e eu fico perguntando “o que os brasileiros estão tomando? Me leve a Porto Alegre, a São Paulo”. Me dizem que em São Paulo as pessoas gostam de carvalho. OK, mas o jovem médico gosta de carvalho? O jovem professor gosta de carvalho? Quem tem 28 anos e é advogado gosta, ou são os consumidores de 50, que já tomam vinho? Muitas das coisas que a Serra pode fazer têm 12%, 12,7% de álcool, e não 13% ou 13,5%. No mundo do (crítico Robert) Parker e esse tipo de gente, 12,5% quase não existe. Mas esses grandes críticos não deveriam ser aqueles a persuadir uma região como o Rio Grande do Sul a fazer qualquer coisa. Não deveriam ter essa influência.
Enoblog: Há quem diga que na Campanha está o futuro da vitivinicultura nacional, e outros dizem que o certo é investir na Serra, por sua personalidade. Você tem uma opinião?
Clarke: Sim. Acho que o futuro é a Serra do Sudeste. Essa é a área do Novo Mundo, e não tanto a Campanha. A Campanha é mais como o Silver Valley na Austrália, como o Central Valley na Califórnia. Mas é bastante quente perto da fronteira com o Uruguai, árido. Claro, há irrigação, mas estamos falando de condições quase desérticas. A Serra do Sudeste tem um tanto de altitude, é um pouco mais próxima do Atlântico e me parece que a quantidade de sol é próxima da obtida na Campanha, mas com brisa e altura. Então é mais confiável. Se eu tivesse de investir em uma abordagem do Novo Mundo, expandiria minhas plantações na Serra do Sudeste em vez de me estabelecer na Campanha. É possível fazer muitos vinhos na Campanha, mas não sei quão bons eles serão. Isso tem a ver com a ideia do Ibravin de “vamos dançar com o Brasil”. É muito importante com a Copa do Mundo e as Olimpíadas se aproximando. São duas oportunidades fantásticas para exportar. Mas é preciso vender o Brasil, sua alma, seu espírito. O espumante moscatel faz isso. São muito bons, com altíssima qualidade. Não experimentei nenhum ruim. São bebidas melhores do que a maioria dos atuais espumantes Asti da Itália. São puro prazer. Os feitos de chardonnay e pinot noir também são bons, mas usam Champagne como modelo. São diferentes. Têm mais sabor. Talvez por usar outro tipo de prensagem. Mas também por os franceses estarem em 49 graus ao Norte, e aqui ser 29 Sul. Por mais que tentem, vocês terão uma fruta diferente.
Enoblog: De tudo o que provou até agora, o que mais chamou sua atenção?
Clarke: Espumantes moscatel, sem dúvida. Seguidos dos espumantes tradicionais com pinot noir e chardonnay. Ambos facilmente se mantém em pé por conta própria, tudo o que precisam é da divulgação adequada no mercado de exportação. Também alguns dos vinhos experimentais que vi, em lugares como a Serra do Sudeste. Mesmo que a vinificação não tenha sido muito boa, você prova e diz “há boa fruta aqui”. E não são muitas pessoas fazendo isso. Acho que as pessoas estão começando a farejar essa região e pensar “devíamos estar lá”. Alguns dos melhores vinhos que provei são incumuns: teroldego, refosco… E combinam com o espírito deste lugar. Muitas dessas iniciativas partem de pequenos produtores. Alguns se colocam em uma camisa de força de Bordeaux, com merlot, cabernet franc, cabernet sauvignon e tannat, com alguma ajuda de ancellotta e coisas do gênero, mas nada muda muito. E não entendo o porquê, já que a primeira tentativa de trazer o Brasil ao Novo Mundo foi nos anos 1970, com Chandon, Almadén, Martini. Eles pensaram “OK, viemos na onda da Califórnia, então precisamos dessas ideias”, e a Califórnia foi baseada nas uvas tintas de Bordeaux. O segundo movimento de grande evolução foi nos anos 1990. Aí é que a revolução do Novo Mundo realmente deslanchou, e todos na Califória, na Austrália, na Nova Zelândia e no Chile quiseram entrar no jogo. Como se faz isso? Tentando elaborar vinhos melhores do que Bordeaux e Borgonha. Então se usa chardonnay, cabernet e merlot. Todos fizeram isso. Aí se olha para a Serra gaúcha. Que condições há para fazer isso? Não há qualquer semelhança com Bordeaux. Talvez com um ou dois lugares da Borgonha, mas pouco. E em estado de espírito? Vinho não se trata apenas de ciência. Também tem a ver com coração, emoção. E ainda gostaria de saber o que é possível fazer no paralelo 29 com brancos como fiano, avelino, falanghino, verdicchio, todos esses brancos que os italianos praticamente esqueceram. Agora, no Século 21, gente como Angelo Gaja e Piero Antinori (produtores italianos) estão dizendo “o futuro da Itália é branco, e não tinto”. Adoraria ver o que esses dois fariam aqui, pois fazem vinhos fantásticos em condições difíceis. Também gostaria de ver mais coisas como os teroldegos, como corvina, que é uma uva do Vêneto/Trento. Só imagine os caras dizendo “ei, essa uva é de onde vieram meus avós”.
Enoblog: Mas parece que os brancos não trazem muito renome no mundo do vinho, pelo menos entre os consumidores, e isso é algo que o Brasil busca.
Clarke: Eles fizeram a fama da Nova Zelândia, e o chardonnay criou a reputação da Austrália. É cíclico. Há momentos em que brancos são mais importantes, em outros são os tintos. Os consumidores são cíclicos. O problema são os malditos críticos de vinho. Especialmente os big boys, ou grandes feras. São loucos por tintos. Querem se encher de grandes, bestiais, mostruosos tintos. É isso que os excita, mas não aos consumidores, às centenas de milhares de apreciadores de vinho. Esses não bebem só rótulos de 100 pontos. Isso é gastropornografia para a maioria. Por isso gostaria de ver mais dos vinhos que custam R$ 12. Em vinhos de 12,5% de álcool, não use carvalho! Por que gastar dinheiro nisso? Não o venda após quatro anos, mas depois de um. Mas aí algo na produção também precisa mudar. E não sei o que é, mas, dentro das vinícolas, muitos produtos são privados do sexo, da adolescência. São feitos para serem sérios. E a maneira de promover o vinho brasileiro não deveria ser “nós podemos ser mais sérios do que vocês”, mas “podemos ser mais divertidos”. Nesse momento isso é possível com o moscatel, mas não com outras variedades.
Enoblog: Você acha que o Brasil tem potencial para ser reconhecido como um importante produtor do Novo Mundo?
Clarke: Sim. Só acho que não funcionou o método usado até agora. Até o momento estão sendo feito vinhos que não são a vocação do país, que são tintos relativamente sérios. Poderiam ser tintos mais frescos, brilhantes, com a cara do dia a dia. Elaborados com viníferas, mas talvez com algo que entusiasme mais as pessoas a respeito do Brasil. Agora na Europa, e de forma crescente na América do Norte, os consumidores _ não as pessoas que leem revistas especializadas, que são uma minoria, mas o comprador padrão _ gostam de frescor, de uma boa bebida. Por isso o sauvignon blanc da Nova Zelândia é um dos vinhos mais importantes do momento. Em qualquer lugar há sauvignon blanc, também do Chile e da África do Sul. O motivo é simples: tem ótimo sabor. Por que o Beaujolais foi tão popular? Tem bom sabor. Qual um dos melhores e mais fáceis tintos do mercado? Gamay. E é barato. Você vê algumas pessoas dizendo “isso não é um vinho sério”. É sim! Muitas vezes pedimos aos produtores que visitamos para provar vinhos mais jovens. Isso é ótimo. É hora de vender esses 2009. Onde estiveram até agora? Em tanques? Em garrafas? De alguma forma, a maturação tirou um pouco de sua alma. São vinhos corretos, mas onde está a alma que se vê no Brasil, na Serra gaúcha? Esta é uma comunidade vinícola fabulosa, mas os vinhos são um tanto sérios, maduros.
Enoblog: Você compararia o perfil enológico brasileiro ao de qualquer outro país?
Clarke: Não consigo pensar em qualquer outro lugar que seja como a Serra gaúcha. É uma linda área, parece um tanto com o Piemonte, ou a Toscana, ou o oeste da Inglaterra, mas não é igual. O Brasil é um país fascinante. Se os italianos não tivessem sido enviados pra cá, não haveria vinhedos aqui. Se fossem poloneses, ou russos, ou qualquer coisa, não teriam dito “vamos plantar parreirais”. Isso é ótimo a respeito dos italianos, é uma cultura fantástica. Se isso não tivesse acontecido no final do Século 19 não acho que haveria uma cultura enológica na Serra. Não consigo lembrar de qualquer outra área semelhante ao que há aqui. Isso é bom e ruim. O prejuízo é que é difícil cultivar uvas sem que elas apodreçam na vinha. Uma das boas coisas é que é preciso colher um pouco antes do amadurecimento. Com isso, naturalmente são feitos vinhos com 12%, 12,5%, 12,7% de álcool, em tintos e brancos. De forma crescente no mundo do vinho, as pessoas estão dizendo “queremos beber mais vinho, mas menos álcool”, e “mais fruta, mas menos carvalho”. Em muitas partes da Europa hoje não se consegue vender um branco com passagem por carvalho.
Enoblog: O estilo do Velho Mundo está voltando a fazer sucesso? Você mesmo disse que os vinhos brasileiros são sérios. Ou o país deveria assumir o perfil do Novo Mundo, com vinhos mais potentes?
Clarke: Potência não. Não é por aí que o Novo Mundo deve seguir. A Nova Zelândia não fez seu nome com força, mas com frescor e perfume. Essa é só uma opinião, não como especialista, mas como um estrangeiro, um visitante entusiasmado. A maioria dos países tem uma cultura enológica recente. O Chile teria o que, 15 anos de experiência? E a Argentina? Dez ou 15 anos. Eles dirão “não, estamos fazendo vinho há 200 anos”, mas a verdadeira cultura tem uma década. A da Nova Zelândia tem 20 anos. A do Brasil também é jovem. Seria dos anos 1990?
Enoblog: Talvez dos 2000…
Clarke: Ou seja, 10 anos. Mas vocês tiraram exemplos dos métodos sérios da Itália e da França. Eu sinto que se perguntasse a alguns enólogos “que tal o sauvignon blanc neo-zeolandês?” eles não saberiam exatamente a que sabor eu estaria me referindo. Não me parece que muitos enólogos tenham feito estágio em outros países a não ser em pontos da França e da Itália. A tendência não é rumo ao Velho Mundo, mas no sentido contrário à monstruosidade. O Novo Mundo tem a ver com alegria e prazer. Esse conceito de explosão alcoólica é completamente nova. O Novo Mundo ficou famoso por causa da fruta, por ser fácil de beber, porque no coração de seus vinhos havia o princípio do prazer. E muitos dos vinhos no Brasil são feitos com terno e gravata, não com uma camisa de praia e bermuda de banho. Muitos vinhos da Nova Zelândia e da Austrália são feitos com trajes de banho, e mesmo assim são sérios, mas muito fáceis de beber. Um especialista diz que é maravilhoso, assim como um taxista. No Brasil, o especialista diz que o vinho é ótimo, e o taxista fala “hum, obrigado, mas vou querer uma caipirinha”.
Enoblog: O que você pretende fazer com toda essa informação que está coletando aqui?
Clarke: Contar ao mundo todo, aborrecer as pessoas até a morte. Já venho espalhando pelo mundo o que acontece aqui. Sempre estou procurando paisagens pra filmar, e este é um ótimo lugar para isso. Mas não acho que vou filmar até perceber que alguém está quebrando os modelos. Há muitos garotos nesse negócio. Não muitas garotas. Ainda é um mundo muito masculino. Uma das grandes coisas que acontecem no Novo Mundo quando ele realmente embala é que as mulheres se envolvem com a produção de vinho. Elas têm um senso diferente do que é excitante, de quais são as possibilidades. Mas ainda acho que vocês não saíram do quadrado, e como estão perfeitamente localizados para elaborar vinhos com pouco álcool, é preciso fazê-los, mais suculentos. Onde está toda aquela fruta? Merlot e cabernet franc podem ter muita fruta. Onde ela está? Vamos achá-la. Também gostaria de ver mais daquelas variedades do norte da Itália.
Enoblog: Por que o mercado britânico é tão importante ao redor do mundo?
Clarke: Bom, é o mais importante mercado para as exportações brasileiras hoje, estou feliz em saber. Mais do que os Estados Unidos. E lá o frescor vende, assim como brilhantismo. Nós amamos futebol. Pensamos no Brasil como o lar do futebol dourado, da genialidade. Se alguém tem uma caipirinha ou um espumante moscatel pode degustá-lo durante um jogo. Mas por que não um cabernet franc, um merlot, um gamay ou um vinho branco? Precisamos mais desse brilhantismo. Não sei se será mais nos vinhedos ou nas vinícolas, mas parece que até agora isso não surgiu. Custaram à Nova Zelândia e à Austrália 150 anos para sair do quadrado. A Argentina, literalmente, só quebrou os moldes há 10 anos. Mas eles têm condições diferentes, podem fazer malbecs pesados. No Chile podem fazer qualquer coisa. No Brasil, não. Num país tão vasto quanto o de vocês não há tantos bons lugares para cultivar uva quanto o Chile. Este não é um país natural para as viníferas. Mas por causa de pessoas determinadas que deveria ser, há algumas boas e exitosas áreas de cultivo. É preciso dar um novo passo.
Enoblog: O que você acha que será a próxima grande moda no mundo do vinho? Já passamos pelos malbecs argentinos, os rosés…
Clarke: Os rosés ainda estão em alta. Os malbecs estão em perigo, pois há muitos deles. Hoje os Estados Unidos estão muito ligados aos malbecs. O Século 21 é da internet, coisas acontecem muito ligeiro. Virar moda rapidamente é perigoso. A próxima tendência não será um país, mas um estado de espírito. O mundo é um lugar difícil no momento. O Brasil está bem, pois faz parte do Bric (bloco econômico de países emergentes). E vocês são a parte vinícola mais importante do bloco. Se o Bric se tranformar em um grupo enológico, o Brasil vai liderar. Certamente não será a Rússia, nem a Índia. A China pode pensar que vai liderar, mas será o Brasil. Mas o resto do mundo não está no Bric. Está com problemas. Serão difíceis cinco ou 10 anos para lugares como a Europa e a América do Norte. Quando você não sabe qual seu lugar no mundo e está se sentindo mal, quer fazer algo pra ficar melhor. Uma das formas mais baratas e fáceis de fazer isso _ quando não se tem dinheiro para um novo carro, casa ou viagem _ é abrir uma garrafa de vinho. Ela tem o poder de fazer as pessoas felizes. Veremos mais e mais vinhos brilhantes, frutados, perfumados, com felicidade no rótulo. Sem muito carvalho ou álcool. E vocês poderão se aproveitar disso. O Brasil sempre foi considerado um lugar estimulante.
Enoblog: Para se destacar, muitos produtores estão preocupados em conquistar prêmios em concursos internacionais. Isso realmente funciona?
Clarke: O estilo de cabernet, merlot, chardonnay ou tannat que vocês fazem não ganhará as medalhas de ouro. Com o espumante moscatel, sim. Com os espumantes champenoise ou charmat também. Os produtores querem os prêmios com seus vinhos normais, mas eles não têm alegria suficiente, personalidade. Ainda estão presos no meio. Mesmo todo o trabalho que foi feito não trouxe caráter especial. Existe uma certa superficialidade homogênea nos tintos brasileiros, especialmente os da Serra gaúcha. Você vai a quatro ou cinco vinícolas e eles todos têm características similares. Esperava que em cada uma eles fossem diferentes. Se provo rótulos de quatro cantinas no Chile, eles são diferentes. Ou quatro variedades de uva, também são distintas. Aqui o merlot é similar ao cabernet franc, ao tannat, ao cabernet sauvignon. Cadê a diferença? Então os produtores não deveriam se preocupar com as medalhas de ouro. São vinhos que provavelmente levarão a prata, mas não o ouro. Esse virá com o tipo de vinho que o Brasil ainda não está fazendo. De alguma forma, há uma divisão entre o tipo de povo que vocês são e o tipo de vinhos que fazem. Os rótulos parecem feitos por alguém com terno e gravata, mas não é o tipo de pessoas que vocês são.
Enoblog: Você faz parte do crescente grupo de celebridades enológicas conhecidas mundialmente. O que acha desse conceito? Que benefícios e prejuízos isso traz?
Clarke: Pessoas que se acham muito poderosas fazem um grande estrago. Gente que diz: “é assim”. Estou aqui dizendo “isso é o que vocês deveriam fazer”, mas no papel de um amador entusiasmado. Estou só colaborando com ideias. Há um ou dois übercríticos que acham que só eles estão certos. Estou aqui com um grupo de jornalistas. Pensamos diferente a respeito de muitas coisas. Sempre podemos sair à noite, beber caipirinhas e falar sobre o que aconteceu durante o dia. Gosto do mundo do vinho pela possibilidade de discordar. Alguns dos críticos mais importantes não gostam que discordem deles. Acho isso ruim. Se você sair pelo mundo dizendo “sei mais do que qualquer outra pessoa”, não está fazendo nenhum bem, e às vezes vai cumprir papel de ridículo. Mas se sair por aí dizendo “tenho uma ideia, e você decide se quer discuti-la ou não”, isso é ótimo. O vinho deveria ser tema de conversa e debate, e não algo com que se bate na cabeça das pessoas. Qualquer que seja a notoriedade que tenho, eu aproveito. É uma diversão, e espero não estar abusando.
Enoblog: Você começou sua carreira nas artes, certo?
Clarke: Sim, fui ator e cantor. E aqui estamos na (vinícola) Don Giovanni, e interpretei Leporello (personagem da ópera Don Giovanni, de Mozart). (Clarke canta um trecho). Fiz isso bastante.
Enoblog: E você compararia o vinho a qualquer forma de arte?
Clarke: Na emoção, sim. O vinho ainda tem de ser uma mistura de agricultura e ciência, mas acho que devem sair de uma visão. E voltando ao Brasil, não me parece que uma quantidade suficiente de produtores tem uma visão de sabor. Uma visão na cabeça, buscando “onde está aquele sabor? Aquele sabor? Aquele perfume, o aroma? Eu quero aquilo!”. Acho que muitos estão fazendo vinho de acordo com um livro, não segundo uma ideia que fica dançando em suas cabeças. Por isso acho que a arte se relaciona facilmente com o vinho. Frequentemente o vinho é emoção, intuição, mas também tem de ser boa agricultura, ciência. Estamos aqui dizendo às pessoas a necessidade de atenção aos detalhes. É muito importante. E isso é muito bem cumprido aqui. Mas com frequência os vinhos mais excitantes são aqueles em que algum equívoco foi cometido, algo saiu errado. Como na vida. Ouça a um grande cantor. Maria Callas nunca foi precisa, mas era maravilhosa. Olhe os grandes cantores, pintores. Creio que têm muitos defeitos que certamente os tornaram melhores. Pessoas sem defeitos são estranhamente sem apelo. Aquelas em que há algo que não está exatamente certo são tão mais excitantes, sensíveis, irresistíveis. Fazer tudo segundo o manual é certo, mas você estará de terno e gravata. Acho que perderá parte do todo.
FONTE: ENOBLOG - MAURICIO ROLOFF